quinta-feira, 29 de março de 2012

MUITO MAIS QUE UMA TV MUÇULMANA

 A rede de TV árabe Al Jazeera deu esta semana uma admirável demonstração de seriedade e maturidade profissional ao atender um pedido do presidente francês Nicolas Sarcozy.

A emissora árabe (sediada no Qatar) tinha em mãos um vídeo exclusivo enviado anonimamente pelo correio.

A gravação de 25 minutos, num pen drive, mostrava cenas feitas pelo fanático muçulmano Mohamed Merah.

Ele gravou, com uma câmera presa no peito, o ataque que fez a uma escola judaica em Toulouse, arredores de Paris, na semana anterior. 

Alegando vingança pelas crianças palestinas e punição para os  franceses pelo envio de tropas ao Afeganistão, ele matou três militares, um professor e três crianças. Acabou morto por policiais na quinta-feira passada, após um cerco de 32 horas.

Em vez de incendiar ainda mais os ânimos sempre acirrados contra o ocidente no mundo árabe, a Al Jazeera, tão logo recebeu e avaliou a gravação, informou as autoridades francesas. Quantas emissoras ocidentais teriam tomado esta atitude?

Sarkozy fez então um apelo à emissora para que o material não fosse veiculado, argumentando que não haveria justificativa para exibir a morte de cidadãos franceses naquelas circunstâncias.

Havia também, embora Sarcozy não tivesse mencionado, o temor de que as imagens pudessem incitar outros radicais suicidas. 

Muito além da surrada questão do terrorismo, o que também merece reflexão nisso tudo é a postura adotada pela rede árabe. Um gesto que deve ser saudado nestes tempos em que ainda ecoam as paranóias do 11 de setembro, e que alimentam a imagem rancorosa que o ocidente tem do mundo muçulmano. 

A Al Jazeera não só evitou ceder ao sensacionalismo como ainda vetou a distribuição do material para outras emissoras. Certamente, muitas redes ocidentais teriam agido diferente.

E mostrou que, apesar dos tresloucados com túnicas e bombas na cintura, o Oriente Médio é muito mais que um mundo de imagens exóticas povoado por uma gente misteriosa cheia de intenções obscuras.  


quarta-feira, 28 de março de 2012

O OLHAR DO CINEGRAFISTA: TÉCNICA E ATITUDE!


Este é um assunto com um belo potencial para criar crises entre repórteres e cinegrafistas.


Mas é preciso superar os melindres, em nome do melhor resultado.
Para começar, é preciso estabelecer uma diferença básica: há duas categorias de profissionais da câmera: os operadores de câmera e os repórteres cinematográficos, ou cinegrafistas.

Os dois operam equipamentos similares, mas com linguagens e aplicações diferentes.

Operadores de câmera geralmente trabalham no estúdio, com câmeras em dollyes (tripés ou suportes hidráulicos com rodas), e seguindo um roteiro pré-estabelecido de movimentos e enquadramentos. Recebem ordens pelos fones, ditadas normalmente pelo diretor de imagens.

Repórteres cinematográficos trabalham em externas, tendo a maior parte do tempo a câmera no ombro.  E precisam estar permanentemente atentos a tudo ao seu redor.

Ao contrário dos operadores, enquadrados como técnicos radialistas, os cinegrafistas, em muitas emissoras, tem quase status de jornalistas - menos no salário, claro...    

As regras básicas valem para as duas categorias. Mas existem parâmetros que vão muito além do enquadramento correto, foco ajustado, movimento adequado e iluminação afinada.

E são especialmente críticos para os repórteres cinematográficos, que atuam nas ruas tendo apenas o próprio olho como “diretor” de imagens.

Pequenas distrações provocam grandes danos na imagem.

Ao enquadrar o repórter (e mesmo entrevistados), o cinegrafista tem que zelar por detalhes que vão além do básico.

Fio de microfone de lapela ou do fone aparecendo, cabelo desalinhado, roupa amassada ou desajeitada, brincos extravagantes, manchas de sujeira na pele, adereços inadequados, caneta despontando no bolso, gola de fora, gravata torta, repórter ruminando chiclete, zíper aberto, etc, etc.

Ok, você pode dizer que isso deve ser preocupação do repórter, é ele que tem que cuidar da sua imagem; o cabelo é dele, a roupa é dele, é ele quem vai estar na tela para milhares ou milhões de pessoas.

Óbvio que o repórter deve obrigatoriamente cuidar destes detalhes.   Mas, muitas vezes, as circunstâncias do momento provocam estas distrações. E ele nem sempre percebe que está desgrenhado na imagem.

E, no final das contas, o verdadeiro responsável pela qualidade da imagem é o cinegrafista.

Ele não pode simplesmente perceber algumas destas imperfeições e deixar passar, colocando a responsabilidade no repórter.  

Pode parecer injusto falar assim., mas a imagem que vai para a tela do telespectador é resultado do trabalho do cinegrafista. Simples assim.

Ele tem que abrir mão de posturas radicais do tipo “azar deste repórter se não sabe se arrumar nem pentear o cabelo! Fiz meu trabalho e pronto!”

Todo cinegrafista deve chamar a atenção do(a) repórter quando percebe algum destes problemas.
Deve alertar para o cabelo desarrumado, o nó mal feito da gravata ou o brinco gritante.

Bem, se o repórter não acatar, aí sim, é azar dele. O importante é que o cinegrafista fez sua parte ao tentar a melhor composição de imagem. 

O cinegrafista, independentemente de questões pessoais, deve ter o sentimento de querer ver o seu repórter bem no vídeo. Televisão é imagem.

Muitos cinegrafistas discordarão, pois tudo isso tem muito a ver com posturas pessoais.

Vamos a outro exemplo - um tanto radical, mas apropriado nesta discussão: se um repórter é baixinho (como eu...) e o entrevistado muito mais alto, o cinegrafista deve encontrar uma maneira de atenuar esta diferença. Não por caprichos do repórter, mas pelo bem do enquadramento e da composição.
Não significa dizer que ele tem que bancar Deus e esticar o repórter  ou encolher o entrevistado.

O cinegrafista precisa, antes de achar que a culpa das estaturas não é dele, entender que acima de tudo vem a plasticidade da imagem, a composição equilibrada que vai manter a atenção no telespectador no tema da entrevista.

Nem sempre isso será possível. Mas o cinegrafista cuidadoso vai pelo menos levar isso em consideração antes de gravar.

Ser meticuloso em relação a todos os detalhes mencionados aqui é característica dos verdadeiros repórteres cinematográficos.

Incontáveis vezes, minha imagem no ar foi salva pelo capricho visual de colegas cinegrafistas atenciosos não só comigo, mas principalmente com a imagem que eles assinariam.

Televisão é imagem.
Mas não qualquer imagem.



sexta-feira, 23 de março de 2012

É MESMO O FIM DOS FICHAS-SUJAS?

O projeto aprovado no Congresso, barrando os “fichas-sujas” já na próxima eleição, foi, sem dúvida, um marco no nosso letárgico e renitente processo para recompor alguma decência aos hábitos políticos desta nação.

Mas, calejados que somos com a nossa classe política e nossos sistemas de governança (municipal, estadual e federal), totalmente viciados em modelos de gestão distorcidos, temos que analisar esta “conquista” com os dois pés atrás.

Especialmente nós, jornalistas.

Por isso, recomendo a leitura do artigo de Percival Puggina, colunista da excelente Revista Voto. A última edição foi lançada há duas semanas.

No artigo intitulado “Fichas-Limpas num sistema Ficha-Suja”, ele faz uma análise extremamente lúcida e contundente sobre as implicações da nova regra, num ambiente onde tudo, a começar pela cultura reinante, é preparado para favorecer os não tão imaculados.

É uma leitura fundamental, pela precisão e clareza com que Puggina descreve as reais possibilidades de que a decisão do Congresso tenha algum efeito prático no pantanoso e mal cheiroso universo da política e da administração pública.

Confiram que vale a pena. Se não forem nas bancas, acessem www.revistavoto.com.br.

Abraços, boa leitura e boa reflexão!


segunda-feira, 19 de março de 2012

A DITADURA DEMOCRÁTICA DO FLAGRANTE

Título esquisito? Não. Esta aparente contradição define uma fase preocupante das reportagens de TV atualmente.

O telejornalismo brasileiro foi picado há alguns anos pelo mosquito do flagrante.
Este bichinho tinhoso nasceu nas poças de sangue que verteram de programas sensacionalistas como o Aqui e Agora, criado pelo SBT no final dos anos 90.

O programa, que apostava na até então inédita abordagem exagerada e teatralizada do chamado mundo cão, durou até a chegada dos anos 2000.
Morreu contaminado pelo vírus que ele mesmo inoculou nas redações das TVs pelo Brasil afora.

Ficou tão over, com repórteres bizarros como Gil Gomes (falecido há poucos anos), que o modelo acabou assustando os anunciantes. As empresas não queriam mais suas marcas associadas a um programa daquele gênero.

Mas eram outros tempos... 

Como em toda epidemia que se preze, o vírus disseminado pelo Aqui e Agora contaminou outros e continuou se espalhando. Lentamente, mas inexoravelmente.

Ainda lá nos anos 90 a própria Rede Globo resolveu arriscar no então sombrio território dos programas policiais. E lançou o Linha Direta, programa em horário nobre que explorava, com requintes de novela e reconstituições sofisticadas usando atores, casos de polícia que tiveram grande repercussão.
A atração teve como âncoras jornalistas renomados, como Domingos Meirelles e Marcelo Rezende. Mas não emplacou por muito tempo.

Apesar disso, a linguagem dramática e tensa nas reportagens policiais, inaugurada em rede pelo SBT lá atrás, estabeleceu uma tendência cada vez mais valorizada pelas grandes redes.

Hoje a linha de programas jornalísticos apoiados na cobertura policial está consagrada.
Band, SBT e Record tem não só produções próprias (Brasil Urgente, Balanço Geral  e outros) como também veiculam atrações de produtoras independentes (Policia 24 horas). Redes regionais seguem o mesmo caminho.

Sempre haverá quem conteste este gênero.

Mas, mesmo com as críticas intensas dos detratores, falando de conteúdos sanguinolentos, exploração insensível das mazelas humanas, etc, estes programas trazem os dramas do dia a dia e acabam ecoando os anseios da população,que clama por mais segurança, mais hospitais, mais emprego, etc. 
E, de quebra, esta tendência trouxe uma saudável democratização dos conteúdos.

A corrida entre as TVs por imagens de flagrantes abriu as portas para que qualquer cidadão armado com celular, câmera fotográfica ou câmera de vídeo amadora, registrasse acontecimentos e visse suas produções veiculadas nos programas e telejornais.

Cenas de acidentes de trânsito, perseguições policiais, atos de violência, incêndios e até brigas de vizinhos chegam às redações pelas mãos de pessoas que antes apenas contemplavam este tipo de imagem nas telas de TV. 

A esse tsunami de flagrantes amadores, se somam os incontáveis registros das câmeras de segurança, privadas ou de sistemas públicos, em cidades e rodovias.

Tudo isso recheou os programas policiais e telejornais com um aluvião de factuais registrados em vídeo – e de graça, salvo raríssimas exceções. Conteúdos que podem ser enviados pela internet.

Ok, essa é a democratização. E onde está a ditadura?

Ela é visível nas telas.

A avalanche destas imagens geralmente precárias levou por diante critérios de avaliação técnica que até algum tempo eram indevassáveis nas redações de TV.

Em nome do factual (o tal flagrante), imagens que editores costumavam rechaçar por causa da baixa (ou nenhuma) qualidade, agora são vistas como material de luxo. Se for exclusivo então, é ouro puro!

Isso é preocupante, mas não muda o fato de que é uma verdadeira democratização de conteúdos, a partir da “participação popular”.

O alerta que quero fazer aqui é que esta tolerância, ou mesmo preferência, por materiais de baixa qualidade em nome do flagrante está criando uma séria distorção nos conceitos de captação e veiculação de imagens. E por tabela, no resultado final das reportagens.

É especialmente preocupante para os repórteres cinematográficos mais novos, que estão desenvolvendo suas habilidades neste ambiente.

Muitos acabarão consolidando seus conceitos técnicos baseados na imposição do flagrante, em detrimento de imagens mais bem trabalhadas em termos de movimento, enquadramento, luz e até mesmo foco.

Uns, pela inexperiência, gravarão matérias com sérios defeitos pensando inocentemente que aquele é o padrão. Outros, mais veteranos, se resignarão e esquecerão as boas regras de captação, para não contrariar o modelo vigente e serem considerados “ultrapassados”.

O mesmo receio se aplica aos editores de imagem e de redação.

Mas afinal, diante disso tudo,  ainda é possível continuar produzindo reportagens com imagens de qualidade, apesar do frenesi imposto pela ditadura do flagrante?

Claro que sim. Mas, tal como a postura de um repórter diante de um fato, isso depende da atitude pessoal de cada um - cinegrafista, editor ou produtor.

Qualidade sempre será qualidade, mesmo numa nervosa perseguição policial.

E zelar por ela será, repito, uma atitude pessoal.






quinta-feira, 15 de março de 2012

O LIVRO DO BONI

Todo mundo já ouviu falar dele. Ou, pelo menos, quem lida com comunicação. Especialmente os que se dedicam à televisão.

José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, é um destes personagens centrais que não apenas movem as engrenagens, mas decidem quais polias devem ser azeitadas e quais devem ser descartadas.

Quando se discute as origens da televisão no Brasil e seus barões, os nomes mais lembrados sempre são Assis Chateaubriand, Roberto Marinho e outros empreendedores.

Boni não foi um magnata da comunicação. Mas viveu o nascimento da TV brasileira. E acumulou um poder equivalente ao dos chefões daquela mídia que crescia no Brasil um tanto tardiamente.

A autobiografia lançada em 2011 é uma viagem interessantíssima aos primórdios do mundo mágico da telinha tupiniquim. E atravessa décadas para chegar aos dias de hoje, com um relato muito rico sobre os caminhos e descaminhos das redes de TV. Com destaque, claro, para a Rede Globo, onde Boni imperou por 30 anos.

O livro traz muitas histórias sobre os bastidores das primeiras produções, e ainda um farto material sobre o mundo das telenovelas - dos seus primeiros capitulos mambembes, até a sofisticação que hoje é reconhecida em todo mundo.

Boni traça uma espécie de linha do tempo onde estão todos os principais acontecimentos na trajetória da TV brasileira, com todos os seus personagens mais relevantes: criadores, artistas, técnicos, chefões, mitos, etc.

Mas em minha opinião, o mais interessante são os relatos sobre as tomadas de decisão. Os processos de escolha de personagens-chave, os conflitos, as delicadas operações para aparar arestas entre autores, diretores, atores e outras tantas figuras envolvidas num mundo onde a vaidade, a soberba e o despotismo se mesclavam com o profissionalismo, o amor à arte e ao desafio de inventar e dar uma cara à TV brasileira.

Não menos interessantes são os episódios que envolvem a aura de quarto poder que sempre pairou sobre a Globo.

Boni fala das relações da rede com o grupo Time –Life e os militares do Golpe de 1964, a cobertura das Diretas Já e também os bastidores da polêmica edição do debate presidencial entre Fernando Collor e Lula.

Boni é um daqueles personagens que sempre alimentarão acalorados debates sobre poder da (ou na) comunicação, e a influência da mídia nos destinos da nação.

Mas o livro, inegavelmente, é uma grande contribuição tanto para os  admiradores quanto os detratores do homem que criou o plim-plim.                                                                                                                





segunda-feira, 12 de março de 2012

AS LIÇÕES NA RECONQUISTA DO COMPLEXO DO ALEMÃO

A tomada dos complexos do Alemão e da Penha pelas forças de segurança, em março de 2011, foi acompanhada pela imprensa como uma verdadeira cobertura de guerra.

As imagens dos tanques do Exército e dos fuzileiros da Marinha  subindo o morro e esmagando as barricadas dos traficantes foram emblemáticas e exploradas ao máximo pela mídia.

Nem poderia ser diferente.

Foi um momento histórico, que gerou um banquete inédito de imagens para as televisões e fotógrafos.
Não se esquecerá tão cedo do flagrante aéreo mostrando os traficantes em debandada rumo aos matos que levam a outros morros.

Naqueles dias, a essência da cobertura era a invasão das tropas, a tentativa de retomada pelo Estado do controle de um território onde os traficantes reinavam absolutos há mais de 20 anos.

E o que aconteceu por lá desde então? O que mudou na vida dos cerca de 400 mil moradores? O tráfico realmente foi derrotado? A paz se estabeleceu naquele território sem lei?

Fui buscar estas respostas no final de fevereiro de 2012, junto com o repórter cinematográfico Gilberto Trindade.

Embora integrando a equipe do programa Brasil Urgente, da Band RS – logo, um programa voltado para o público gaúcho – achei que era hora de atacar a pauta, aproveitando o gancho que eu esperava há tempos: o envio de tropas gaúchas para integrar a Força de Pacificação.

Negociei com os comandos militar do sul e do leste (RJ), e com os comandantes da Força. Conseguimos nos instalar em uma das bases improvisadas no meio da comunidade.

TENSÃO PERMANENTE

Viver entre os militares, em vez de ficar em hotel, era a melhor forma de captar o clima tenso que, um ano depois, ainda gela o sangue de cada soldado que sai em patrulha pelo emaranhado infinito de vielas apertadas que se esparrama morro acima no Alemão e da Penha.
Uma perigosa teia de caminhos repletos de chances de emboscada, e onde ainda acontecem escaramuças entre as tropas e traficantes remanescentes.

Sempre de colete balístico (resistente a fuzil) e capacete, acompanhamos patrulhas durante o dia e varando a madrugada. Percorremos toda a região em jipes, motos e nos blindados Urutu. 

A atividade militar é incessante. Assim que uma patrulha volta para a base, outra sai na mesma hora. As tropas estão por toda parte, circulando a pé entre os moradores, percorrendo ruas e avenidas com jipes e caminhões apinhados de homens preparados para enfrentamento a qualquer hora.
A presença militar ostensiva resgatou uma sensação de segurança que ninguém por lá lembrava mais como era.

Os grandes traficantes foram presos ou fugiram para longe. As casas-fortaleza de onde comandavam o crime foram ocupadas pelos militares e pintadas de branco para simbolizar a volta da paz.
Os pontos onde o trafico era mais intenso e os traficantes desfilavam com fuzis pela rua, viraram postos de controle militar.

A retomada da região pela Força de Pacificação devolveu a tranqüilidade às ruas. O número de pequenos estabelecimentos comerciais se multiplicou, e a valorização dos imóveis alcançou 100% desde a ocupação.

As escolas, com vigilância militar, cumprem seus horários normais, sem ter mais que obedecer aos toques de recolher impostos pelos traficantes, que ordenavam o fechamento das aulas, sabotando o ano letivo e impedindo que os alunos completassem o curso.

O reinado de terror, onde era comum que soldados do tráfico invadissem casas das famílias para pegar a filha desejada pelo seu patrão, acabou.

O tráfico ainda continua, mas agora nas mãos de figuras que antes eram os chamados olheiros, fogueteiros, vapores e outros tipos menores. Órfãos do crime que agora tentam ocupar o lugar deixado pelos grandes.

Só que hoje eles não tem o território livre que fora abandonado pelo Estado, e onde seus ex-líderes prosperaram por tanto tempo.

Enquanto estávamos lá, por duas vezes as tropas foram alvejadas por disparos de pistola dos pequenos traficantes. Na mesma hora receberam de volta uma barragem de fogo de fuzil dos militares. Assunto liquidado na hora.

O GRANDE DESAFIO COMEÇA EM JULHO

Assumir o controle de uma região tão populosa, tão carente de serviços públicos e com uma arraigada cultura de resignação e tolerância ao poder do tráfico, exige muito mais que imposição militar.

É o que se chama de conquistar corações e mentes. A população no Alemão e na Penha ainda olha os soldados com certo desdém, como se quisessem sinalizar que é apenas uma questão de tempo até os traficantes dominarem tudo de novo.

A lei do silêncio continua uma instituição inabalável. As poucas declarações que pacientemente consegui arrancar de alguns moradores foram relatos quase monossilábicos. Mas ainda assim, diziam telegraficamente que se sentiam mais seguros; e logo davam um jeito de se livrar do microfone.

Enquanto as patrulhas circulam por toda a região, outros grupos de militares seguem uma detalhada estratégia planejada para restabelecer serviços que haviam sumido por conta do domínio do tráfico.

Acompanhamos os militares levando caminhões-pipa com água para abastecer comunidades que estavam há semanas com as torneiras secas. Vimos a tropa recebendo agradecimentos contidos de uma gente  que havia perdido completamente qualquer esperança de ser bem tratada pelo Estado.

Vimos máquinas da prefeitura voltando a subir os morros para instalar redes de água e de eletricidade, caminhões retomando a coleta de lixo, assistentes sociais transitando livremente para ouvir a população e encaminhar demandas represadas há décadas.   

Mas é agora que vem o maior desafio. Expulsar o tráfico foi fácil, diante do que vem pela frente.

Em julho deste ano, a Força de Pacificação devolverá o controle dos Complexos do Alemão e da Penha para o Governo do Rio de Janeiro.
Os militares voltarão para os quartéis, e o Estado reassumirá a comunidade para a qual virou as costas há mais de 20 anos, com a desculpa de que não conseguia penetrar no território autônomo do tráfico.

A segurança ficará por conta das policias civil e militar do RJ, que antes só subiam estes morros se fossem abertas as portas da corrupção.

A experiência do RJ é um alerta para o governo gaúcho, que promove a instalação dos chamados Territórios da Paz em comunidades onde o tráfico é intenso.

A tropa gaúcha que viu de perto os efeitos do abandono de uma comunidade pelo Estado, acumulou conhecimentos que poderão ser muito úteis por aqui.

Vamos torcer para que um dia não precisemos enviar tanques para a Restinga, Rubem Berta, Bom Jesus e outras áreas de Porto Alegre onde o tráfico desafia o poder público.