segunda-feira, 19 de março de 2012

A DITADURA DEMOCRÁTICA DO FLAGRANTE

Título esquisito? Não. Esta aparente contradição define uma fase preocupante das reportagens de TV atualmente.

O telejornalismo brasileiro foi picado há alguns anos pelo mosquito do flagrante.
Este bichinho tinhoso nasceu nas poças de sangue que verteram de programas sensacionalistas como o Aqui e Agora, criado pelo SBT no final dos anos 90.

O programa, que apostava na até então inédita abordagem exagerada e teatralizada do chamado mundo cão, durou até a chegada dos anos 2000.
Morreu contaminado pelo vírus que ele mesmo inoculou nas redações das TVs pelo Brasil afora.

Ficou tão over, com repórteres bizarros como Gil Gomes (falecido há poucos anos), que o modelo acabou assustando os anunciantes. As empresas não queriam mais suas marcas associadas a um programa daquele gênero.

Mas eram outros tempos... 

Como em toda epidemia que se preze, o vírus disseminado pelo Aqui e Agora contaminou outros e continuou se espalhando. Lentamente, mas inexoravelmente.

Ainda lá nos anos 90 a própria Rede Globo resolveu arriscar no então sombrio território dos programas policiais. E lançou o Linha Direta, programa em horário nobre que explorava, com requintes de novela e reconstituições sofisticadas usando atores, casos de polícia que tiveram grande repercussão.
A atração teve como âncoras jornalistas renomados, como Domingos Meirelles e Marcelo Rezende. Mas não emplacou por muito tempo.

Apesar disso, a linguagem dramática e tensa nas reportagens policiais, inaugurada em rede pelo SBT lá atrás, estabeleceu uma tendência cada vez mais valorizada pelas grandes redes.

Hoje a linha de programas jornalísticos apoiados na cobertura policial está consagrada.
Band, SBT e Record tem não só produções próprias (Brasil Urgente, Balanço Geral  e outros) como também veiculam atrações de produtoras independentes (Policia 24 horas). Redes regionais seguem o mesmo caminho.

Sempre haverá quem conteste este gênero.

Mas, mesmo com as críticas intensas dos detratores, falando de conteúdos sanguinolentos, exploração insensível das mazelas humanas, etc, estes programas trazem os dramas do dia a dia e acabam ecoando os anseios da população,que clama por mais segurança, mais hospitais, mais emprego, etc. 
E, de quebra, esta tendência trouxe uma saudável democratização dos conteúdos.

A corrida entre as TVs por imagens de flagrantes abriu as portas para que qualquer cidadão armado com celular, câmera fotográfica ou câmera de vídeo amadora, registrasse acontecimentos e visse suas produções veiculadas nos programas e telejornais.

Cenas de acidentes de trânsito, perseguições policiais, atos de violência, incêndios e até brigas de vizinhos chegam às redações pelas mãos de pessoas que antes apenas contemplavam este tipo de imagem nas telas de TV. 

A esse tsunami de flagrantes amadores, se somam os incontáveis registros das câmeras de segurança, privadas ou de sistemas públicos, em cidades e rodovias.

Tudo isso recheou os programas policiais e telejornais com um aluvião de factuais registrados em vídeo – e de graça, salvo raríssimas exceções. Conteúdos que podem ser enviados pela internet.

Ok, essa é a democratização. E onde está a ditadura?

Ela é visível nas telas.

A avalanche destas imagens geralmente precárias levou por diante critérios de avaliação técnica que até algum tempo eram indevassáveis nas redações de TV.

Em nome do factual (o tal flagrante), imagens que editores costumavam rechaçar por causa da baixa (ou nenhuma) qualidade, agora são vistas como material de luxo. Se for exclusivo então, é ouro puro!

Isso é preocupante, mas não muda o fato de que é uma verdadeira democratização de conteúdos, a partir da “participação popular”.

O alerta que quero fazer aqui é que esta tolerância, ou mesmo preferência, por materiais de baixa qualidade em nome do flagrante está criando uma séria distorção nos conceitos de captação e veiculação de imagens. E por tabela, no resultado final das reportagens.

É especialmente preocupante para os repórteres cinematográficos mais novos, que estão desenvolvendo suas habilidades neste ambiente.

Muitos acabarão consolidando seus conceitos técnicos baseados na imposição do flagrante, em detrimento de imagens mais bem trabalhadas em termos de movimento, enquadramento, luz e até mesmo foco.

Uns, pela inexperiência, gravarão matérias com sérios defeitos pensando inocentemente que aquele é o padrão. Outros, mais veteranos, se resignarão e esquecerão as boas regras de captação, para não contrariar o modelo vigente e serem considerados “ultrapassados”.

O mesmo receio se aplica aos editores de imagem e de redação.

Mas afinal, diante disso tudo,  ainda é possível continuar produzindo reportagens com imagens de qualidade, apesar do frenesi imposto pela ditadura do flagrante?

Claro que sim. Mas, tal como a postura de um repórter diante de um fato, isso depende da atitude pessoal de cada um - cinegrafista, editor ou produtor.

Qualidade sempre será qualidade, mesmo numa nervosa perseguição policial.

E zelar por ela será, repito, uma atitude pessoal.






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